
(Deixei o Jornal da Tarde, de São Paulo, e segui nos meses finais de 1974 para a revista quinzenal Visão, de muito prestígio na época, também com Redação em São Paulo. Esta foi a minha primeira reportagem de fôlego, para a qual contribuíram colegas.)
Os resultados antes das eleições
O Governo Federal assistiu com tranquilidade ao desenrolar da campanha eleitoral que chega ao fim como a mais livre das que se realizaram no país após 1964. Os sinais de inquietação, registrados à medida em que se firmava a perspectiva de um avanço da oposição, não vieram do Palácio do Planalto e foram bem absorvidos ali. Se esses sinais confirmaram haver ainda, dentro do sistema revolucionário, fortes resistências à distensão, a atitude do Governo fez aumentar a confiança geral no seu programa político, que se quer de curso lento, gradual e seguro.
Funcionou um acordo tácito entre o Governo e os partidos para assegurar à campanha um nível de liberdade propício ao debate e à mobilização popular. A base desse acordo foi a clara e vigorosa orientação oferecida ao país pelo presidente Ernesto Geisel, no discurso que pronunciou ao receber os dirigentes nacionais e regionais da Arena, quando se ensaiava a arregimentação eleitoral.
Sua adequada execução se deveu à ação discreta e firme efetuada pelo Governo, sempre por via dos mecanismos institucionais, e à sensibilidade com que a oposição identificou a nova realidade política e a ela se ajustou. Tendo ocorrido já em plena campanha, nem a conclusão do processo contra Francisco Pinto (cassado pelo STF, rapidamente afastado do mandato pela direção da Câmara e logo preso) foi capaz de gerar algum incidente que perturbasse o quadro.
[Francisco Pinto, o Chico Pinto, da Bahia, pertencia à ala mais à esquerda do MDB, era um deputado extremamente ativo que em 1974 pronunciou um discurso de críticas que os militares consideraram “exagerado” sobre a violação dos direitos humanos no Chile pela ditadura do general Augusto Pinochet, líder do sangrento golpe militar que derrubou em 1973 o socialista Salvador Allende, presidente legítimo eleito em 1970].
Soluções de consenso
A ação conjugada entre o Supremo Tribunal Federal e o comando parlamentar no caso Francisco Pinto – e o comedimento do MDB nessa mesma emergência — demonstrou que as instituições políticas estão determinadas a impedir a consumação de situações críticas, sempre que prevenidas dos riscos. Teríamos aí o primeiro exercício importante da prática do consenso. E a superação fácil daquele episódio contribuiu, certamente, para que o Governo pudesse manter o controle da campanha sem apelo a intervenções extra institucionais, que comprometeriam o seu esforço para conduzir o processo político por soluções do consenso.
Assim é que o Palácio do Planalto pôde responder à inquietação de certos setores quanto a alegados excessos na campanha, indicando que existe um órgão institucional próprio e apto a lidar com tais problemas, coibi-los e, se preciso, punir os responsáveis. Esse órgão é a Justiça Eleitoral que, durante a campanha e mesmo depois dela, julga as denúncias que lhe forem levadas, sejam de fraude ou coação, sejam de calúnia ou injúria, sejam de casos que se enquadrem na vaga expressão “contestação”.

Já no último mês da campanha, em face da “preocupação quanto aos excessos”, chegada ao Governo, o ministro da Justiça, Armando Falcão, conversou com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Thompson Flores. O resultado foi uma instrução do TSE aos tribunais regionais, recomendando maior severidade no controle das manifestações dos candidatos.
A campanha eleitoral teve desenvolvimento satisfatório e, através dela, mesmo mantendo o rigor no controle, o Governo deu um passo importante no sentido da distensão. Não há motivos para supor que se desencadeará, em seguida, uma enxurrada de processos políticos na Justiça Eleitoral. Contudo, na eventualidade de problemas que as eleições suscitem dentro do sistema dominante, não é inviável alguma ação de “exemplaridade” (ou mesmo algumas), nos moldes daquela que proscreveu da vida pública o deputado Francisco Pinto.
Sem imunidades
Mesmo depois de concedida a diplomação ao candidato eleito, seu mandato não está imune à impugnação. Há a possibilidade de que ele seja denunciado, posteriormente, por crime eleitoral e, além disso, existe a hipótese do artigo 222 do Código Eleitoral: “É também anulável a votação quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o artigo 237 (poder econômico e desvio ou abuso de autoridade) ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei”.
O Palácio do Planalto não se mostra preocupado com a perspectiva de que a bancada do MDB alcance o terço da Câmara dos Deputados e de que o partido oposicionista cresça também no Senado, com cadeiras conquistadas em Estados importantes como São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco. “As eleições são para valer”, disse uma fonte qualificada de Brasília a D’Alembert Jaccoud, de Visão. E ninguém duvida da determinação do presidente Ernesto Geisel de acatar e sustentar os resultados das urnas, nem da capacidade do Governo de estabelecer um diálogo efetivo com uma oposição que se fortaleça como peça do regime.
Ao longo dos oito anos de sua existência, o MDB mudou muito. O partido que não aceitava a Constituição castellista de 1967, recusando-se a subscrevê-la por julgá-la demasiadamente autoritária, passou a ter saudade daquela Carta quando o país se viu sob a que vige até hoje, outorgada pela Junta Militar. A seguir, conformou-se até com a Constituição de 1969, para reclamar apenas a supressão dos instrumentos de arbítrio. Nessa fase, a oposição ainda não admitia a ideia de reconhecer a Revolução como fato histórico irreversível e ajustar-se a ela, declarando-se também partido revolucionário, irmão gêmeo da Arena. Completa-se, agora, no entanto, o movimento lento, gradativo e inelutável da aproximação.
Hoje, a defesa dessa ideia já não incompatibilizaria o deputado Adolfo de Oliveira com os seus companheiros, forçando-o a deixar a Secretaria Geral do MDB e o próprio partido, como aconteceu no início da legislatura que agora termina. Esse movimento se consuma e se consagra, na teoria e na prática do “consenso” – que é obviamente um consenso revolucionário e do qual não se cogitaria enquanto não fosse possível trazer para ele a oposição, como expressão de uma parcela das elites nacionais. Trata-se de um resultado lógico, quase inexorável, dos sucessivos surtos revolucionários que vieram dobrando e reduzindo a oposição até trazê-la ao ponto de aproximação, a partir do qual ou ela se identifica, para sobreviver e desempenhar um papel, ou então acabará como um remanescente absorvido no partido único.
Esse — o partido único — é o resultado que se quer evitar. Ajustada à realidade impositiva, a oposição aceita a abertura que lhe é oferecida e traz sua contribuição para estabilizar num regime forte um Estado de Direito. Pela primeira vez, sua campanha não toma como principal bandeira as ideias liberais, mas, antes, os problemas econômicos, sociais e políticos do modelo de desenvolvimento adotado nos anos recentes. O que o MDB pede é a possibilidade de um debate efetivo, procurando demonstrar que, sem isso, tendem a consolidar-se erros, distorções e injustiças que tornam cada vez mais difícil a conciliação nacional.
Em tais condições, o crescimento eleitoral da oposição não tem — como fato em si — por que preocupar o Governo. Afinal, o êxito que o MDB possa alcançar nestas eleições o levaria, na melhor das hipóteses, a conquistar um terço da Câmara dos Deputados. Isso não afetaria a estabilidade da maioria arenista, que continuará maciça e protegida pela fidelidade partidária. A oposição poderia, teoricamente, instaurar comissões parlamentares de inquérito e propor emendas constitucionais. Mas a compreensão de que as instituições não podem correr risco, mais a disposição geral para o diálogo, em busca do consenso, tornam difícil supor que o MDB use aquelas faculdades para criar embaraços à transição do regime.
Uma paixão rompida em Pernambuco
“O medo acabou”, proclama um outdoor de propaganda da candidatura de Marcos Freire, no Recife. Num clima de intenso envolvimento – e “de plena liberdade”, como também reconheceram os oposicionistas –, os pernambucanos voltaram a apaixonar-se por uma campanha eleitoral. Nesse Estado orgulhoso de sua combatividade, o fim da indiferença parece ter o sabor de um reencontro com os grandes momentos de sua história política: para muitos, a campanha lembra o movimento que levou ao Governo, em 1958, contra a vontade (e para surpresa) das velhas oligarquias, o udenista Cid Sampaio.

Agora, como há dezesseis anos, e como se estivessem em jogo a conquista do Palácio das Princesas e não apenas uma entre 22 cadeiras de um Senado desprovido de poder, a convicção de que é preciso renovar pelo menos os nomes da política local empolgou uma parcela inesperadamente diversificada de eleitores — sobretudo no Recife, é certo, mas também na Zona da Mata, no Agreste e até no Sertão, onde os caciques do antigo PSD, hoje da Arena, descobrem, perplexos, que já não reina absoluta a obediência nos seus fechados feudos políticos.
“O homem novo”
À primeira vista, seria só isso — o combate do novo contra o velho — que polarizou o eleitorado de Pernambuco e o fez envolver-se na disputa entre João Cleofas, 76 anos, representante dos setores mais tradicionais da economia canavieira, e Marcos Freire, 43 anos, professor de direito constitucional no Recife, o deputado federal que mais votos conseguiu no Estado nas eleições de 1970. Realmente, o fator “idade” conta – e muito. No interior, onde o candidato da oposição é chamado “o homem novo”, correm anedotas cruas sobre a velhice de Cleofas. Também conta aquilo que os comentaristas políticos designam, com discutível precisão, o “carisma” de Marcos Freire – uma imagem eleitoral associada à juventude, à boa aparência e a posições bem definidas. Universitárias que não souberam responder a Visão o que é o Al-5 e o Decreto-lei 477 disseram que votarão em Freire – e não será por terem acompanhado seu desempenho como deputado do “grupo autêntico” do MDB.
Mas, além do charme vagamente kennedyano de Freire, escreve Luiz Weis, enviado especial de Visão, outros fatores ajudaram a motivar o interesse político da população. Em primeiro lugar, o próprio estilo de campanha desenvolvido pelo pequeno grupo de assessores do candidato. Um slogan feliz – “sem ódio, sem medo.” – contatos diretos como eleitor (por exemplo, no porto do Recife, às 5 horas da manhã), utilização exaustiva dos horários gratuitos no rádio e TV, pronunciamentos quase diários na imprensa sobre assuntos do momento (até no Dia da Criança: “deveria chamar-se em Pernambuco Dia da Mortalidade Infantil”) mantiveram o candidato em cena durante todo o período eleitoral.
A “necessidade de desabafar”, que o comando da campanha do MDB diz ter identificado desde o início no eleitorado, orientou os discursos de Freire. “A dor dói mais quando não se grita”, afirmava nos comícios. Mas teve o cuidado de não ferir ouvidos reconhecidamente sensíveis: as críticas, por mais vigorosas, sempre se mantiveram a uma prudente distância do que poderia ser interpretado como “contestação ao regime”. Tampouco se apresentou como candidato ou porta-voz de uma classe social em particular. Dos baixos salários do trabalhador às dificuldades da agroindústria açucareira, seus temas procuraram denotar uma preocupação com os problemas do Estado como um todo – o que, segundo seus colaboradores, deveria garantir-lhe uma safra generosa de votos até em setores pouco simpáticos às teses da oposição. Finalmente, não fez promessas. Ao contrário, explicou que o único poder que tem um parlamentar hoje é o de protestar. Em Ouricuri, no Alto Sertão, a 644 km do Recife, um ouvinte respondeu: “Entendi. O senhor será o fiscal das coisas malfeitas”.
Comício no Piauí
Os assessores de Marcos Freire comentam que a participação dos universitários, que estudam no Recife e cujas famílias vivem no interior, foi decisiva para que o candidato pudesse penetrar politicamente nos longínquos “currais eleitorais” da Arena, onde o MDB sequer possui um diretório municipal (o partido só tem bases em pouco mais de um terço dos 164 municípios do Estado). Os estudantes começaram a percorrer suas regiões de origem distribuindo panfletos: “Todo sertanejo precisa ouvir umas verdades. Marcos vem aí. Você vai entender por que todo mundo está votando nele”. O deputado federal Fernando Lyra — a quem se atribui a iniciativa da candidatura Marcos Freire — conta que um grupo de universitários se perdeu no Sertão e chegou, sem querer, à vila de Marcolândia, onde promoveu um comício. Só depois os estudantes descobriram o erro: Marcolândia fica no Piauí.
Os dirigentes do MDB pernambucano são os primeiros a reconhecer que nem a campanha nem sua repercussão teriam sido possíveis se não fosse “O clima de liberdade” sob o qual transcorreu o período eleitoral. “Houve um ou outro incidente no interior”, disse o secretário-geral do partido, deputado estadual Jarbas Vasconcelos, “mas sem importância.”
Alguma importância o MDB precisou dar, pelo menos no início, ao estilo com que o futuro governador do Estado, Moura Cavalcanti, entrou na campanha. Disposto a assumir o comando político efetivo no Estado, e certamente ressentido pela falta de empenho de líderes arenistas como Nilo Coelho e Paulo Guerra na campanha por João Cleofas, insinuou na TV a existência de relações entre a oposição e “Cuba e Argélia”. O MDB reagiu imediatamente. “Inverdades desse tipo quebram o clima de respeito necessário às eleições”, respondeu Marcos Freire. Pouco depois, quando Cavalcanti aludiu a um misterioso “dinheiro do México” para a campanha da oposição, o MDB resolveu adotar a tática da ironia. A “irresponsabilidade” do novo governador, passaram a dizer os líderes do partido, faz com que ele se tenha transformado no “grande eleitor” de Marcos Freire.
De todo modo, essas escaramuças não inibiram os eleitores. “A perda do medo é um fato real”, observa o ex-deputado Egídio Ferreira Lima, experiente analista da política pernambucana. Os cartazes de Marcos Freire nas portas de casas operárias nos arredores do Recife “testemunham simbolicamente que as pessoas já não receiam ser identificadas como eleitores da oposição”, segundo Ferreira Lima.
Que significaria essa identificação? Para o deputado Fernando Lyra, “o povo passou a confiar no MDB como porta-voz de seus problemas”. E a campanha eleitoral permitiria que o homem comum percebesse “a relação entre as dificuldades que experimenta na vida cotidiana e as limitações políticas ao exercício dos seus direitos como cidadão”. Ou, nas palavras de um jovem candidato a deputado estadual, Roberto Freire, “a partir da carestia é possível chegar à democracia”.
O ter e o ser
O renovado interesse pela política em Pernambuco nem sempre é interpretado como consequência da atuação oposicionista. O deputado federal Marco Antônio Maciel, da Arena, prefere atribuí-lo às próprias “transformações socioeconômicas e culturais produzidas pela Revolução”. Ele aponta o crescimento da população universitária, a presença dos meios de comunicação e, principalmente, a urbanização” como os fatores que estariam gerando uma “demanda de participação” de novo tipo. “Quando, em Cabrobó, a 700 km do Recife, um eleitor me pergunta o que

acho do restabelecimento de relações com a China”, raciocina o deputado, “percebo que alguma coisa mudou. Há alguns anos, ele estaria interessado em conseguir um favor pessoal em troca do voto”. A seu ver, os temas político-institucionais preocupam menos do que “os assuntos ligados ao desenvolvimento”. “O povo está mais voltado para o ter que para o ser”, afirma.
Até por isso, políticos da oposição previam para Marcos Freire votação substancial no eleitorado classe A, no Recife. Especialmente o “setor moderno” dessa classe — jovens executivos, técnicos de nível superior e profissionais liberais dedicados a atividades econômicas tipicamente urbanas — teria recebido com pouco entusiasmo a designação de Moura Cavalcanti para governador de Estado e estaria propenso a “dar uma tacada no Governo” no dia 15 de novembro, em protesto contra sua marginalização política na sucessão estadual. Além disso, tais eleitores não tenderiam a considerar o senador João Cleofas como seu representante e não teriam ficado alheios às frequentes denúncias de Marcos Freire em relação ao “esvaziamento econômico de Pernambuco”. Como ele mesmo disse: “A frustração causada pela interrupção do processo de desenvolvimento, a partir de 1967, quando a Sudene começou a se esvaziar, produziu agora um clima propício a nossa pregação”.
Na noite de domingo, 3 de novembro, cerca de 30 mil pessoas foram ouvir Marcos Freire no bairro de Casa Amarela, no Recife. Foi o maior comício da campanha, mas não chegou a constituir uma surpresa: até mesmo importantes adversários admitiam sua vitória na capital e na área metropolitana do Grande Recife. Considerava-se incerta apenas a diferença: se fosse tão ampla como previa seu partido (5 a 1) ficaria contrabalançada a derrota no Sertão, julgada inevitável apesar de todos os avanços do MDB.
Em qualquer hipótese, a campanha eleitoral de 1974 deixará um saldo claramente positivo em Pernambuco e, eventualmente, ensinará alguma coisa ao país inteiro.
Uma barreira rompida em São Paulo
“A campanha está empurrando o MDB para o povo”, diz a Visão o senador Franco Montoro, coordenador da campanha da oposição em São Paulo. “Houve a ruptura de uma barreira importante: o medo”, julga o deputado estadual Alberto Goldmann, do MDB. “Há desta vez um grande interesse pelas eleições, porque as pessoas querem participar, fazer alguma coisa”, comenta o deputado federal José Roberto Faria Lima, da Arena.

Na verdade, a estratégia que teria aproximado o MDB dos eleitores, a disposição de enfrentar eventuais riscos e o desejo de participar são fatores que se somam para explicar o interesse dos paulistas pela campanha eleitoral. Comícios surpreendentemente concorridos, o horário gratuito na TV “dando IBOPE”, como diz o presidente do MDB, deputado Ulysses Guimarães, a participação de operários e estudantes na luta pelos votos caracterizam esse interesse. Há um amplo consenso de que esse estado de espírito beneficiou o MDB: na iniciativa da campanha desde o começo, a oposição parece ter conseguido atrair uma vasta camada de eleitores até então indiferentes e mesmo ter sensibilizado aqueles que vinham apoiando candidatos da Arena.
Na raiz do êxito do MDB estaria a tática de levar a debate temas de interesse imediato, como o custo de vida e a política salarial, “chegando ao problema institucional individualmente”, segundo o senador Montoro. “O mais importante”, acrescenta, “é que o MDB apresentou os problemas e indicou as soluções. E mostrou que as injustiças econômicas ocorrem porque falta liberdade de crítica.” Um dirigente sindical concorda com o raciocínio de Montoro: “A campanha atingiu diretamente o trabalhador em razão da fórmula adotada pelo MDB: tocar nos problemas vitais e imediatos, para os quais existe uma maior sensibilidade”.

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, do Cebrap — Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, acha que a fórmula transcende a campanha eleitoral. “Ao falar em temas como o salário e o custo de vida”, disse a Ricardo Setti, de Visão, “o MDB deu o primeiro passo para se transformar em partido real.” Cardoso considera que a oposição, ao se apresentar como um partido “não ideológico” e ao tratar de assuntos concretos, realizou com eficiência uma manobra capaz de atingir “uma massa de gente com expectativas definidas, em consequência do crescimento do país, e que, de repente, se deu conta de que tem os bolsos vazios”. A seu ver, a campanha eleitoral ajudou o MDB a caminhar na direção de uma identidade: a de “partido dos assalariados”.
A oposição soube também elaborar cuidadosamente a campanha. Seu Comitê Estadual de Propaganda, de que fazem parte os publicitários Laércio Cavalcanti, professor da Fundação Brasileira de Marketing, e Rolando Colombaro, conseguiu de saída uma vitória importante ao negociar com a Arena e as emissoras a utilização do horário gratuito para propaganda eleitoral na televisão.
Quarenta vezes por dia
Os dois partidos, por proposta do MDB, abriram mão de vinte minutos diários de horário gratuito em três dos seis canais, alternadamente, em troca de quarenta inserções diárias de filmes de trinta segundos. As mensagens beneficiaram principalmente Orestes Quércia, cuja figura era muito menos familiar no Estado do que a do ex-governador e senador Carvalho Pinto, ambos disputando vaga no Senado. (As primeiras pesquisas encomendadas pela Arena davam a seu candidato a arrasadora vantagem de 72% a 7% dos votos, o que se explicava pelo fato de Quércia ser virtualmente desconhecido.)
O MDB beneficiou-se ainda da coerência com que conduziu desde o início sua pregação. Preliminarmente, o senador Montoro indicou vinte temas que deveriam servir de base à propaganda do partido. Depois, levando em conta até a reação da Arena, foram selecionados os assuntos de maior repercussão, em torno dos quais passou a se concentrar a maioria dos pronunciamentos: custo de vida, salários, habitação, INPS, saúde pública, liberdade de expressão, eleições diretas. Semanalmente, realizaram-se reuniões para avaliação de resultados e eventual retificação de rumos, com a participação de Orestes Quércia, Franco Montoro, Ulysses Guimarães e assessores.
A Arena, por sua vez, manteve-se quase todo o tempo na defensiva, justificando-se, apresentando explicações ao eleitor e criticando a orientação do MDB que, assim, bem ou mal, tinha suas teses debatidas nos comícios e programas do adversário. “A Arena foi um dos nossos melhores cabos eleitorais”, diz Laércio Cavalcanti.
Além de ter uma estratégia eficaz, O MDB semeou em terreno fértil. “O povo estava com saudade de ouvir todas as palavras”, afirma Israel Dias Novaes, ex-deputado federal pela Arena e o primeiro cassado (pelo A1-5, em 1968, embora sem suspensão de direitos políticos) a voltar à disputa eleitoral, agora pelo MDB. “Há uma grande desilusão em relação a todo esse período de restrições”, assinala o deputado Alberto Goldmann, que identifica dois tipos de reação no eleitorado: “protesto e alegria”. Mas o fundamental, a seu ver, “é a volta à participação política”. Resume um dirigente sindical: “Votar na oposição é uma forma de protestar”.
O voto de protesto, tão combatido pelo futuro governador Paulo Egydio Martins, é reconhecido – e compreendido por outros políticos da Arena, como o deputado José Roberto Faria Lima. “Se o voto não é arma de protesto, com que se vai protestar: com uma metralhadora? com uma peixeira?”
Uma decisão: votar
Outro fator que reforçou a posição do MDB foi a decisão de setores anteriormente refratários de integrar-se ao processo eleitoral. Na Universidade de São Paulo e em diversos outros centros de ensino, por exemplo, a questão de anular o voto ou votar num partido foi amplamente discutida: uma parte considerável dos estudantes tende a votar — no MDB. Não raros universitários participaram da campanha de Orestes Quércia e fizeram propaganda de candidatos como Freitas Nobre, Airton Soares e Alberto Goldmann.

Um dado adicional foi a capacidade revelada por Quércia, de 36 anos, na construção de uma imagem atraente para o eleitorado: mocinhas disputaram seu autógrafo, na capital e no interior, com tal ardor que, mais de uma vez, ele foi obrigado a interromper suas conversas com eleitores de casa em casa. Em fortes redutos da Arena, como Catanduva, ele foi recebido entusiasticamente; em Marília, nem a chuva afastou o público de seu comício; em Avaré, depois de ter sido carregado pelo povo, precisou refugiar-se num carro da polícia. Candidatos da Arena a deputado recomendam seu nome aos eleitores, para não perder votos. Até cabos eleitorais e membros de diretórios da Arena (como os integrantes da “ala jovem” da região do ABC) admitiam abertamente que votariam em Quércia.
A propaganda desenvolvida pelo MDB tem, decerto, méritos pelos resultados obtidos. Mas, na formação da popularidade de Quércia, que não revelou recursos oratórios e nível de conhecimentos particularmente notáveis, entram elementos imponderáveis, que os políticos não sabem explicar de forma adequada e que produzem comparações de exagero óbvio, mas nem por isso menos reveladoras, do tipo “é o novo Jânio Quadros” (feirante, 52 anos), ou “é o futuro Getúlio Vargas” (eleitor de classe média, em Catanduva). E a “juventude” de Quércia: um número surpreendente de pessoas diz que votará nele apenas, ou principalmente, em razão de seus 28 anos menos do que Carvalho Pinto.
Na Arena, o próprio coordenador da campanha na área da capital, José Eduardo Faria Lima (filho do ex-prefeito e deputado estadual mais votado em 1970), reconhece que o partido “está na defensiva”. A dez dias das eleições, Faria Lima — que está deixando a política — ainda acreditava que a situação pudesse ser alterada. Mas suas esperanças e as de outros arenistas esbarravam na conduta do futuro governador Paulo Egydio. Além de dedicar boa parte de seus pronunciamentos à oposição, Paulo Egydio adotou uma tática desconcertante, ora acenando com dificuldades, até institucionais, em caso de vitória da oposição, ora assumindo atitudes conciliatórias. No dia 3 de novembro, em Limeira, advertiu os prefeitos da Arena: “Até o dia 15, eu peço; depois, eu concedo”. Dois dias depois, contudo, em Ribeirão Preto, ele assegurava que nas eleições não estava em jogo “a Revolução de 1964, mas os partidos políticos criados depois dela”. No dia seguinte, em São Caetano do Sul, tornava a advertir, desta vez os eleitores: “Hoje eu falo da inutilidade do voto de protesto; amanhã vocês precisarão de mim para a solução dos problemas de sua cidade”.
O principal assessor técnico da Arena, o publicitário Irineu de Sousa Francisco, entretanto, discorda da tese de que o partido ficou na defensiva. “Não é estar na defensiva exaltar o que foi feito (durante os últimos anos)”, afirma. Ele considera que a campanha arenista contra o voto de protesto deu resultados e que, por isso, o MDB passou a declarar-se não contra o Governo, “mas contra a Arena”.
Vença quem vencer, os políticos, em especial os da oposição, mostram-se satisfeitos: aumentou o interesse pelas eleições, a participação popular chegou a surpreender e o abrandamento de certos controles teve efeitos salutares: foi possível levar a debate uma série de relevantes problemas nacionais até então mantidos a distância do público.
Depois do dia 15, como diz o deputado José Roberto Faria Lima, “o importante será o passo seguinte: que farão os vitoriosos?”. Ao que se pode acrescentar outra pergunta, não menos importante: que farão os vencidos?
(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado na revista quinzenal Visão em 18 de novembro de 1974 sob o título original de “Eleições — a redescoberta da política”)