A proverbial musicalidade do idioma italiano os denomina enti inutili – repartições públicas de funções inexistentes, desconhecidas ou devoradas pela passagem das décadas. No kafkiano cipoal da burocracia da Itália, os enti inutili, na última vez em que foram contabilizados, somavam 2 mil. Ali se encontravam pérolas do cinismo cartorial, como um departamento destinado a assistir os órfãos da II Guerra Mundial, encerrada em 1945, ou entidades simplesmente cômicas, como um organismo assistencial de veteranos das campanhas de Giuseppe Garibaldi, encerradas há bem mais de um século.

Pois bem. Tomara que, no Brasil, o ministro Aluísio Alves [da Administração] não se meta à semelhante proeza contábil – caso contrário, é bem possível que, uma vez mais, a Europa se curve ante a pujança incomparável do torrão verde-amarelo. Basta ver o que aconteceu nos últimos dias: não fosse o “panelaço” ocorrido quinta-feira, em Brasília, e o país teria sido tomado pelas trombetas do Apocalipse que soaram às primeiras e tímidas sugestões de que o governo se dispõe, afinal, a demitir funcionários ociosos.

O barulho do “panelaço”, os carros incendiados à distância visual do Palácio do Planalto e o batismo de fogo da Nova República com os humores da rua, porém, por mais que ocupem o staff do general Ivan de Souza Mendes [chefe do Serviço Nacional de Informações, depois extinto e substituído pela Agência Brasileira de Inteligência, Abin] e as telas da televisão, não são suficientes para apagar do horizonte o tamanho da briga que o governo vai comprar se resolver cortar nacos desse batalhão com carimbo na mão e papel na escrivaninha.

Basta lembrar o que aconteceu quando o hoje ministro da Agricultura, Íris Rezende, iniciou seu governo em Goiás e quis demitir 20 mil funcionários que haviam entrado pela janela na gestão anterior, durante a campanha eleitoral. Só faltou ser linchado. Na safra de eleitos no ano passado para as prefeituras de capitais, nem o sr. Jânio Quadros, com sua arrogância de gauleiter e suas sinalefas, foi capaz de mover uma palha para enxugar a prefeitura da maior cidade do país.

Não é o caso, certamente, de alguém estranhar qualquer desses episódios num país em que o futebol está vinculado ao Ministério da Educação, o Carnaval é repartição das secretarias estaduais de Turismo e o Ministério da Administração, há mais de um ano engalfinhando com esse King Kong burocrático, mal sabe ao certo o tamanho do monstro que supostamente tenciona domar.

De fato, o Brasil certamente foi para o Livro Guinness dos Recordes quando precisou fazer um censo para saber quantos são os funcionários aos quais paga todo mês, e outro para verificar quantos, entre esses, recebem mais de um salário diferente. O pior é que até hoje não há nenhuma garantia de que o governo saiba, e muito menos de que vá deixar de pagar os que recebem a mais.

Pioneiro país, este. A Revolução Francesa formulou que o direito ao trabalho é um dos direitos humanos? Pois o Brasil inventou que o direito a permanecer no emprego público é um direito divino. Ao longo da história, derrubam-se governos, cassam-se mandatos, confiscam-se bois – mas não se demitem funcionários. As derrubadas ilegais, as cassações criminosas, os confiscos inócuos são feitos. As demissões necessárias, jamais. O ministro Aluízio Alves, é verdade, já descobriu 200 mil funcionários ociosos – só que, por um prodígio da malemolência tupiniquim, nem um único vai para a rua. Serão todos “reaproveitados”, garante o ministro. Vaporizou-se o BNH, sobraram 8 mil e 300 funcionários – e já se vai metade da Nova República socorrer os desvalidos à custa dos contribuintes.

Para se adaptar ao Plano Cruzado (o primeiro, ainda, de 1986), os bancos privados levaram um monumental safanão e tiveram de demitir 100 mil bancários. Para se adaptar ao Plano Cruzado II, porém, o governo não consegue dizer com todas as letras que precisa demitir gente de um banco que ele próprio fechou. Se os funcionários do BNH serão “aproveitados” na Caixa Econômica Federal, que provavelmente, para “aproveitá-los”, terá de “aproveitar” também os imóveis do desativado BNH, não vendendo nenhum deles, qual terá sido a misteriosa economia feita com essa mirabolante manobra?

Qual será o espantoso sortilégio que preserva perpetuamente os servidores do estado da mera possibilidade de serem submetidos às agruras, incertezas e surpresas (muitas vezes até agradáveis, por sinal) do mercado de trabalho, no qual se aventura a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros? À falta de cientistas sociais que expliquem o fenômeno, talvez fosse o caso de colocar sensitivos ou gurus atrás das razões que levam empresários com uma vida inteira de clamor pela racionalidade e eficiência do Estado – como o próprio ministro Dilson Funaro ou o secretário de Controle das Estatais, Antoninho Marmo Trevisan – a manter virtualmente intocado o paquiderme, a partir do momento em que se aboletam em seu lombo.

O celebrado oitavo PNB do mundo ocidental vai continuar sendo o 43º nos indicadores sociais de que tanto se lamenta o dr. Ulysses Guimarães, se continuar tendo São Paulo, Caxias do Sul ou Ji-Paraná como capitais do país que produz, e Brasília como única capital do país que gasta. Às portas da Constituinte, está mais que na hora de os políticos com mandato popular encararem o tamanho descomunal do Estado brasileiro como pedra de toque da questão da democracia no país. Líderes como o governador eleito do Rio, Moreira Franco, começam muito mal sua anunciada proposta de renovação se já antes de proclamados pelo TRE resvalam para a demagogia barata em casos como o dos servidores do BNH.

Se Moreira, recém-ungido pelo voto, só consegue enxergar como sua primeira missão defender os ociosos do BNH, imagine-se o que fará com as 40 mil vagas que o governador Leonel Brizola deixou de preencher no Estado durante sua gestão. Argumentar com a hipocrisia em curso da “questão social”, num momento em que o mercado de empregos está superaquecido e ávido por braços, não faz jus sequer à originalidade de idéias do novo governador do Rio.

O livro Guinness vai acabar tendo um volume inteiro só dedicado ao Brasil.

(Artigo publicado no Jornal do Brasil em 30 de novembro de 1986 sob o título original de “O direito divino”)

Image
Reprodução do artigo publicado

DEIXE UM COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *