Se houver tempo para negociar um esvaziamento da greve geral [que as duas principais  centrais sindicais programaram para  sexta-feira, 12 de dezembro deste 1986, o governo poderá utilizar um gatilho que dormita, pachorrento, em uma de suas incontáveis gavetas. Não é, naturalmente, o gatilho da reposição salarial, tão diligentemente posto a enferrujar pelos ministros da área econômica com o apoio do presidente José Sarney.

Este gatilho, como demonstrou com tanta competência o Dieese, já teria que ter sido apertado no mês passado, não fosse a maquiagem dos índices inflacionários praticada, do lado oficial, com idêntica sofreguidão à demonstrada pelos empresários que cobram ágio do consumidor. Não é tampouco o afoito gatilho inquisitório do ministro Paulo Brossard, sempre pronto a disparar, com a pontaria digna dos melhores arremessadores gaúchos de boleadeiras, em direção à esquerda, mesmo quando falta a indispensável munição da prova. Da mesma forma, não se está falando do gatinho censório que o ministro Antônio Carlos Magalhães, com uma desenvoltura de Armando Falcão, brande contra os noticiários de rádio e televisão a respeito da greve geral.

O mecanismo é um gatilho trabalhista que o ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, queria acionar naqueles longínquos dias em que o Plano Cruzado provocava as dores finais do parto. Se disparado agora, poderia ajudar a travar a greve e, quem sabe, diminuir a temperatura do caldeirão crítico que atingiu ponto de fervura com a edição do pacote do Cruzado II. Trata-se do atendimento de duas antigas reivindicações dos sindicatos brasileiros: a redução da jornada semanal de trabalho e a aprovação de uma severa penalização para as demissões de trabalhadores sem justa causa.

As duas providências eram para ter vindo à tona simultaneamente ao grande pacote do cruzado propriamente dito, expedido a 28 de fevereiro passado. Elas faziam parte da estratégia com a qual o núcleo central dos formuladores do Cruzado pretendia atrair para a defesa pública do pacote a figura de Pazzianotto, cujo apoio era então considerado vital para a reforma econômica ser aceita pelos trabalhadores e pela opinião pública. Houve uma crucial reunião na noite de segunda-feira, 24 de fevereiro, numa sala localizada atrás da biblioteca do Palácio da Alvorada, em que as duas medidas foram aprovadas pelo estado-maior da reforma econômica, sob a presidência do próprio presidente José Sarney.

Ali estavam os ministros Dilson Funaro, João Sayad, Marco Maciel, Pazzianotto, Ivan de Souza Mendes e Rubem Bayma Denys, o consultor-geral da república, Saulo Ramos, o secretário pessoal de Sarney, Jorge Murad, e o cinco dos sete jovens economistas que conceberam o Cruzado. A punição da rotatividade e a redução da jornada de trabalho integrariam o elenco de benfeitorias trabalhistas destinadas a acolchoar os aspectos mais ásperos do pacote – sobretudo o duro freio nos salários – e figurariam ao lado do seguro-desemprego, do abono geral de 8% e da puxada do salário mínimo para um patamar acima do inicialmente planejado.

Naquela noite, porém, Pazzianotto foi convertido, no caso, ao princípio de Maquiavel segundo o qual o bem deve ser feito em prestações. Vamos dar o seguro-desemprego agora e, dependendo da reação dos trabalhadores ao Cruzado, vão-se pingar, nos próximos meses, as duas outras concessões trabalhistas – foi a base do raciocínio que o próprio presidente defendeu. O ministro aceitou, mas enfiou na manga a carta da virtual aprovação das duas medidas para o futuro.

Esta história nunca veio antes à tona. Pazzianotto não tem dado, nos últimos dias, sinais de que queira puxar este poderoso ás de ouro da manga e jogá-lo na movimentada mesa política da Nova República. Ele tem preferido atacar em outros flancos – insinuando, por exemplo, a possibilidade de concessão de algum abono de emergência para os salários mais próximos do fundo do poço, ou mexendo pauzinhos para que a área econômica altere o índice de preços ao consumidor tão canhestramente concebido que o decreto-lei que o regulamentou sequer dignou-se a se lembrar de que trabalhador também fica doente, veste roupas e põe filho na escola.

Mas o ministro sabe que, à sua frente, existe uma parede de aço chamada contenção de demanda, na qual o governo empenha todas as suas forças. O seu outro canto do olho se dirige a seu próprio prestígio e também enxerga o Ibirapuera, verdejante sede da prefeitura de São Paulo que estará em disputa eleitoral dentro de menos de dois anos. É talvez por isso que Pazzianotto já ande dizendo que não acredita na possibilidade de pacto social – aquele mesmo que o presidente Sarney defendeu com tanta veemência esta semana. Por tudo isso, será extremamente interessante observar o comportamento do ministro diante da greve.

(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado no Jornal do Brasil em 7 de dezembro de 1986 sob o título original de “O gatilho do ministro Pazzianotto)

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Reprodução do artigo publicado no tradicional espaço de opinião “Coisas da Política”

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