Conta o ex-ministro Roberto Gusmão que, ao assumir a Secretaria de Governo do governador Franco Montoro, em fevereiro de 1984, uma das primeiras providências que tomou foi mandar trocar o uniforme da guarda do Palácio dos Bandeirantes. Em sua opinião, a majestade essencial que o poder deve encerrar para ser acatado não combinava com barrigas salientes, que ameaçavam saltar fora dos uniformes de soldados cevados pela boa vida e pela fartura da cozinha palaciana.

Pois bem. A julgar pela reação oferecida à opinião pública pelo candidato do PMDB ao governo de São Paulo, Orestes Quércia, diante das acusações oficiais sobre seu envolvimento no escândalo da Delfin, não seria estranhável que, uma vez eleito, reinstalasse em seus postos guardas de umbigo à mostra. Seria uma atitude coerente de quem cuida com tanto descaso da própria reputação.

Examinemos os fatos. Conforme reportagem que o JORNAL DO BRASIL publicou no domingo passado, e que pipocou imprensa afora ao longo da semana, o candidato do PMDB é objeto de uma acusação oficial, contida em relatório elaborado por uma comissão de inquérito do Banco Central integrada, também por funcionários do BNH. Segundo o documento, em poder da Justiça, uma empresa de Quércia teria simulado uma operação de compra e venda de imóveis em Campinas com a Delfin do famigerado Sr. Ronald Guimarães Levinsohn.

A transação jamais teria se concretizado, destinando-se segundo o relatório a permitir que Levinsohn – cujo grupo foi objeto de intervenção do Banco Central em janeiro de 1983 – transferisse dinheiro da Delfin S/A Crédito Imobiliário para outras empresas menos periclitantes de seu conglomerado. Assim, conforme o documento, Quércia recebeu o dinheiro correspondente à suposta venda, mas devolveu a maior parte dele ao próprio Sr. Levinsohn, através de um mecanismo simples: dos cheques de uma das empresas de Levinsohn que Quércia embolsou pelo negócio, três só podiam ser depositados em outra dessas mesmas empresas, a Delfin Rio. E diz ainda o relatório, efetivamente lá se foram eles, endossados de próprio punho por Quércia. Não bastasse isso, diz o papelório oficial, a simulação de venda ainda se deu em imóveis que, na ocasião, estavam hipotecados a um banco que não deu sua anuência ao negócio.

Um político competente e cioso de sua biografia procuraria desmontar, com fatos, cada uma das afirmações contidas no relatório. Quércia, ao contrário, conseguiu enxergar na reportagem do JORNAL DO BRASIL o “espernear de pessoas que estão apavoradas porque estamos crescendo nas pesquisas” [para a eleição ao governo do Estado, à qual concorre pelo PMDB]. Adicionalmente, atacou o redator-chefe do JB, Fernando Pedreira. No mais, procedeu como se o relatório oficial fosse produto de um ectoplasma conspiratório, e não um calhamaço oficial recheado de documentos. Ao longo de toda a semana, embevecido com números que lhe são efetivamente mais risonhos nas pesquisas de opinião pública, o candidato do PMDB não produziu um único desmentido convincente a qualquer dos pontos mais incômodos do relatório oficial.

E, no entanto, trabalho é que não lhe teria faltado. Vamos supor, por hipótese, que realmente os imóveis de Campinas não mais lhe pertençam, como diz Quércia, apesar de o 2º Cartório de Registro de Imóveis da cidade ainda tê-los em seu nome. Que se dê de barato a falta de memória – Levinsohn ou uma de suas empresas se esqueceram de registrar como seus os imóveis vendidos por Quércia, e pronto. Digamos, também, ser perfeitamente possível que um esquecimento desses possa durar quatro anos – período transcorrido desde a realização do negócio até hoje. Ainda assim caberia a Quércia, como cidadão e candidato, esclarecer ao menos dois pontos: 1) a venda de um imóvel hipotecado; 2) a devolução do dinheiro a Levinsohn.

Não basta a um homem em sua posição dizer, sobre o primeiro ponto, que é “prática normal de comércio”. E não convence afirmar, sobre o segundo, que os cheques “não existem”. A lei brasileira veda a venda de imóvel hipotecado. E os cheques tanto existem que, com o endosso de Quércia, estão anexados ao relatório do Banco Central.

Há sempre a possibilidade de que Quércia não leia o que assina, mesmo quando tem à mesa papéis com cifras coruscantes. Se assim for, a queda de padrão nos uniformes da guarda palaciana será o menor dos males.

(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado a 12 de outubro de 1986 no Jornal do Brasil sob o título original de “O uniforme do guarda”)

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