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Começa, dentro de exatos 19 dias, a longa travessia do deserto para o governador paulista Orestes Quércia. Quando transmitir o cargo a seu sucessor, Luiz Antônio Fleury Filho, Quércia estará pela primeira vez nos últimos 16 anos sem o manto protetor de um mandato eletivo. Candidatíssimo à Presidência da República no ainda longínquo ano de 1994, ele é cauteloso: “Se a eleição fosse hoje, eu não poderia escapar de ser candidato, mas até lá muita água vai correr debaixo da ponte”.

De fato. Para ter uma tribuna, Quércia primeiro precisa capturar a presidência do PMDB na convenção do partido, a 24 de março, passando por cima da candidatura do governador do Paraná, Álvaro Dias. Adversários fora do partido, é claro, não lhe faltarão, a começar pelo presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Mais que tudo, porém, uma candidatura Quércia só terá chance na proporção direta do insucesso do governo do presidente Fernando Collor – que, apesar de acossado pela crise econômica e a confusão política, ainda não gastou um quinto de seu mandato.

O governador de todo modo, já assume ares de candidato, desfraldando a bandeira de um projeto desenvolvimentista à Juscelino Kubitschek para o Brasil e atacando o presidente. “Collor está isolado, não ouve ninguém, não fala com ninguém, não negocia com o Congresso”, diz Quércia.

Ele próprio negocia muito: depois que admitiu sua candidatura ao comando do PMDB, recebeu um cortejo de governadores eleitos pelo partido, circulou intensamente em Brasília e participou da articulação que escolheu o novo líder do PMDB na Câmara. De seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes, tendo atrás um quadro a óleo do ex-presidente (e ex-governador de São Paulo) Rodrigues Alves, Quércia falou na semana passada ao Estado.

Estado – O senhor comemorou o acerto provisório com o governo federal a respeito da dívida pública paulista. Os títulos estaduais que estavam com dificuldade de colocação no mercado foram congelados e o governo emprestou títulos federais ao Estado por 60 dias. Quer dizer que a bomba vai estourar na mão do governador eleito, Luiz Antônio Fleury Filho?

Orestes Quércia – O governo admite que poderá ampliar esse prazo de 60 dias.

Estado – De toda forma, o problema não foi resolvido, mas adiado.

Quércia – Tem de haver uma negociação. Nós acumulamos essa dívida ao longo de 30 anos, e é preciso que se dê um prazo longo aos Estados.

Estado – Mas a parte mais difícil da negociação vai ficar com Fleury.

Quércia – É, vai ficar. Mas não sei se é mesmo a mais difícil. De qualquer forma, o governo federal fez o que deveria fazer, porque lhe cabe conduzir a política econômica.

Estado – O governo federal atribuiu a crise à gastança dos governadores, inclusive o senhor.

Quércia – É um equívoco. Os títulos públicos são uma instituição. Não se pode acabar com o mercado de títulos de uma hora para outra. O sequestro do dinheiro feito pelo governo significa liquidar uma instituição, porque o título é uma instituição. Eu não peguei um tostão de títulos da dívida paulista para gastar. Isto existe desde o governo Carvalho Pinto (1959-1963).

Estado – Mas o senhor poderia ter reservado parte da arrecadação para amortizar o principal da dívida. A rolagem custaria menos. Ao mesmo tempo, quando o Estado pagava acima do mercado para rolar seus títulos, sangrava os cofres públicos.

Quércia – Quem poderia adivinhar que a situação ficaria como ficou? Isso aconteceu nos últimos 60 dias.

Estado – Se, como o senhor diz, o problema se deveu ao enxugamento de dinheiro provocado pelo Plano Collor, deveria ter-se manifestado antes. Por que isso não aconteceu?

Quércia – Porque a instituição do título ainda era uma coisa saudável. O pessoal comprava. A saúde dos títulos foi abalada pela política do governo. Não iria resolver nada aquilo que eu pudesse tirar da receita. O que o governo alega é que havia alertado os Estados numa reunião, seis meses atrás, dos secretários da Fazenda. Ora, eu nem fiquei sabendo. Se o presidente quer promover um reajuste e precisa dos Estados, deve chamar os governadores e dizer que é preciso fazer um acerto.

Estado – O senhor teria concordado com um acerto desse tipo?

Quércia – Claro! Agora, o valor total dos títulos paulistas equivale a cinco meses de arrecadação, o que significa que não podem ser pagos numa única administração. Isto teria de ser levado em conta.

Estado – O senhor abrandou sua postura crítica em relação ao governo depois do acerto sobre os títulos?

Quércia – O Banespa estava indo todos os dias para o redesconto no Banco Central. Eu estava nervoso, tenso, e só podia estar, porque o Banespa, que é uma importante instituição brasileira, vinha sendo atingido. Por isso, as declarações que fiz na outra semana foram agressivas.

Estado – Como se comportará o PMDB diante do governo tendo o senhor como presidente?

Quércia – Se eu chegar à presidência do PMDB – afinal, vai haver uma eleição, e a gente nunca sabe, não é? -, seremos uma oposição confiável ao País, não maneira em relação ao governo. Uma oposição que não terá cargos no governo, mas, evidentemente, estará disposta a dialogar sobre questões de interesse do País. Não radical, como é o PT comigo em São Paulo. Eles votam contra mesmo se acharem que um projeto é bom.

Estado – Não foi o que ocorreu na Assembleia durante a votação do projeto que extingue a Carteira de Previdência dos Deputados. O senhor vetou artigos que obrigavam o Estado a pagar gordas aposentadorias consideradas imorais por grande parte da sociedade…

Quércia – São imorais.

Estado – … e que custariam US$ 180 milhões aos cofres públicos nos próximos quatro anos. Vários deputados, inclusive do PT, que votaram a favor de seu veto, acham que o senhor não fez o que poderia fazer para mobilizar a bancada fiel ao governador e impedir a manutenção das atuais aposentadorias.

Quércia – Isso já é um pouquinho de política, não é? Sofri pressões de uma violência que você não imagina para não vetar. E eu vetei.

Estado – Só que depois o senhor deixou o barco correr…

Quércia – Deixei, como? Eu vetei. O que é que eu podia fazer? A Assembleia é que tinha de resolver.

Estado – O próprio líder do PMDB disse que o senhor não transmitiu nenhuma orientação à bancada. O que interessava não era impedir a sangria dos cofres públicos?

Quércia – A obrigação do líder do governo é votar de acordo com o interesse do governo. Mas aí esteve envolvido o interesse dos deputados, sobretudo os que não se reelegeram. Pelas pressões que sofri, posso imaginar a pressão que eles sofreram. Fui procurado por viúvas e filhos de deputados que foram meus colegas. Antigos deputados hoje em situação financeira dificílima me relataram aqui situações dramáticas, mulheres de amigos disseram que iriam ficar na miséria, e mesmo assim eu vetei. A obrigação dos meus liderados era manter o veto.

Estado – O que o anima a presidir o PMDB?

Quércia – Na verdade, estou sendo levado a isso. Mas é claro que eu também quero fazer esse trabalho. Os depoimentos dos cinco governadores que estiveram comigo na terça-feira tiveram esse sentido: nós precisamos reorganizar o partido. Em diversos Estados existem problemas sérios que precisam ser equacionados.

Estado – Só isso?

Quércia – Hoje existe no Brasil um vácuo quanto à organização de poder. Queremos que o PMDB, organizado em todo o País, preencha este vácuo. Na História do Brasil, como no restante do mundo, sempre foi assim: alguém ocupa esse espaço. Na República Velha, as oligarquias paulista e mineira mandavam no Brasil. Com a revolução de 1930, Getúlio Vargas e os tenentes acabaram ficando 15 anos no poder. De 1945 em diante tivemos o PSD, que foi a grande organização de caráter nacional. Jânio Quadros e João Goulart não chegaram a ter esses mecanismos de poder. Com 1964, veio a Escola Superior de Guerra. Quando os militares deixaram o poder, em 1985, a morte de Tancredo Neves fez com que ficássemos sem um grande organizador.

Estado – O presidente Fernando Collor não tem condições de preencher esse vazio?

Quércia – Temos hoje um presidente sem partido, que não ouve ninguém, não dialoga com ninguém. O governo não tem uma estrutura que o sustente.

Estado – Que projeto para o País o senhor vai propor ao PMDB?

Quércia – Minha ideia é fazer a Fundação Pedroso Horta, vinculada ao PMDB, levantar a questão brasileira Estado por Estado. Temos de fazer um grande projeto de desenvolvimento para o Brasil. Nenhum país pode parar. Essa paralisação que o presidente Collor está impondo ao Brasil vai ser muito onerosa.

Estado – É possível combater a inflação sem uma taxa de recessão?

Quércia – Esses pacotes não resolvem nada. Eu me lembro que quando foi decretado o Plano Collor, em março do ano passado, fiquei três horas conversando sobre o assunto com meus secretários da área económica. Eles estavam convencidos de que iria ser uma beleza. Um deles me perguntou: “O que você acha?” Respondi que era muita banana por um tostão.

Estado – O que o senhor quis dizer com isso?

Quércia – De repente chega ao governo um sujeito sem experiência administrativa, baixa uns decretos – um negócio feito por intelectuais que foram à faculdade, mas que nunca viveram o dia a dia do País – e todo mundo acha que é uma beleza. Eu disse: “Tomara que dê certo, mas não acredito.”

Estado – Por que o senhor não acreditava?

Quércia – Nós temos uma tradição, usos e costumes que devem ser lembrados. Dou um exemplo pessoal: quando assumi, a segurança era a preocupação número um de 50% da população. Hoje, a questão baixou para quarto lugar entre os problemas que mais preocupam as pessoas. O que fizemos? Aproveitamos as antigas estruturas, promovemos reformulações, modernizamos, construímos presídios, instituímos o radiopatrulhamento padrão dentro dos próprios esquemas existentes. Normalmente, as pessoas que querem mudar chegam e mudam tudo, arrebentam o que existe.

Estado – Foi o que Collor fez?

Quércia – Foi. Esse negócio de pacote não subordina a realidade. Ela é que subordina o pacote.

Estado – Logo após o Plano Collor, o senhor chegou a admitir que não havia alternativas para muitas medidas adotadas, inclusive o enxugamento do dinheiro. De lá para cá, essa posição mudou?

Quércia – Não, nunca fui favorável ao confisco do dinheiro. Se dei essa impressão foi porque as pessoas me diziam que era a salvação do País. Mas eu não acreditava. Acho que até se poderia fazer o enxugamento, mas num processo normal, sem pacote, no meio de um conjunto de medidas. O problema é o pacote. Os pacotes desconhecem a realidade. Essas medidas radicais não têm levado a nada. O Plano Cruzado, por exemplo, foi uma forma de o povo gastar reservas. Acabaram as reservas, acabou o plano.

Estado – Mas o senhor se elegeu justamente no embalo do Cruzado.

Quércia – É. Embora o candidato do Cruzado fosse o (empresário) Antônio Ermírio de Moraes. Foi uma candidatura que nasceu do Planalto.

Estado – É inegável que o senhor levantou a bandeira do cruzado e do confisco do boi no pasto durante a campanha.

Quércia – É verdade. O PMDB foi beneficiado politicamente pelo Plano Cruzado. Nem por isso o plano deixou de ser o que eu disse que foi.

Estado – Hoje, que alternativas o senhor proporia aos pacotes?

Quércia – Os pacotes trazem uma insegurança absoluta. Precisamos ter regras claras, respeitar certas tradições, certos usos e costumes. Pode-se mudar coisas ao longo do caminho, por meio de regulamentos, depois de debatidos os assuntos com os interessados. Qual é o empresário que hoje tem segurança para investir? As coisas, na área econômica, têm de ser cuidadas politicamente.

Estado – Como deve ser a intervenção do Estado na economia?

Quércia – É preciso intervir na economia com sutileza e com inteligência. Não dá para intervir com violência, com truculência. Acho que o Brasil está precisando é disso. Também é preciso desregulamentar mesmo a economia.

Estado – O senhor acha que o governo Collor não está fazendo isso?

Quércia – Se alguém perguntar ao Collor, ele vai dizer que desregulamentou. Só que ele tinha mil regulamentos e fabricou mais mil para mudar os mil. Então, não desregulamentou nada. Sou favorável a mais liberdade na economia. O que o Estado precisa fazer é infraestrutura. Eu mesmo procurei fazer isso. No dia 12, por exemplo, vou inaugurar a hidrovia que liga o Rio Tietê ao Paraná. São 1.400 quilômetros de hidrovia, o transporte mais barato que existe.

Estado – Mas o presidente Collor chegou ao governo propondo justamente isso.

Quércia – Só que ficou na proposta. Na prática, há a intervenção absoluta do Estado. Collor não tem experiência e manda os técnicos fazerem.

Estado – O presidente dialoga o suficiente com os políticos?

Quércia – Não conversa nada.

Estado – Nem com o senhor?

Quércia – Comigo ele nunca conversou. Tirando os encontros protocolares e uma audiência, não houve nenhum diálogo entre nós. Ele me tratou muito bem, não há dúvida. Mas a única pessoa do governo que me procurou foi a (ministra da Economia) Zélia (Cardoso de Mello). Temos um presidente que não se relaciona direito com o Congresso. Está tudo errado.

Estado O senhor acha que o governo realizado em São Paulo vai ajudar sua candidatura à Presidência da República?

Quércia – Eu não sou candidato fechado à Presidência. Poderei vir a ser. Mas acho que o fato de ter governado São Paulo e, antes, ter governado Campinas, ajuda. Minha preocupação agora, se for eleito presidente do PMDB, é fazer um partido forte. Vou fazer isso sem ambição de ser presidente. Hoje, uma grande corrente no partido quer que eu seja. Só que as coisas podem mudar amanhã. Mas acho que fizemos um grande governo. Na área da criança, por exemplo, conseguimos estender algum tipo de assistência do Estado a praticamente todos os meninos de rua.

Estado – O senhor é muito criticado por ter dado ênfase à infraestrutura material, como as rodovias, em detrimento do capital humano. Teria faltado investimentos no aprimoramento da educação, por exemplo, ou melhorias salariais nas áreas de educação e saúde.

Quércia – Os salários dos servidores da saúde tiveram em meu governo o maior aumento da história. Os da educação também. E que existem, aí, interesses políticos envolvidos. O pessoal do PT conduz esses movimentos… É claro que o salário do professor não é o ideal. Mas fizemos muito. Em segurança, por exemplo, compramos oito mil veículos novos, mais do que os cinco governos anteriores juntos. Fizemos 20 penitenciárias: tínhamos 12 mil vagas nas prisões e construímos mais 15 mil. Só na Capital, pulamos de 51 para 103 distritos policiais. Somos o único governo estadual com plano de habitação. Construímos 200 mil casas. Até hoje, haviam sido construídas 30 mil no Estado. Dupliquei 1.100 quilômetros de rodovias. O que se fez em 45 anos, eu fiz em quatro. Meu governo pavimentou oito mil quilômetros de estradas vicinais.

Estado – A população continua se queixando dos serviços de saúde e da educação.

Quércia – Na educação, implantamos a jornada única – as crianças não ficam mais três horas e meia nas escolas, mas seis horas, se alimentam melhor, os índices de repetência e de evasão diminuíram. Construí 48 escolas de formação de professores, onde os alunos estudam o dia inteiro e ganham um salário-mínimo por mês.

Estado – Só que a escola pública continua com má fama.

Quércia – Continua. Este é o grande desafio que temos. E na saúde há duas verdades. A primeira é que existem muitos problemas. A outra é que nenhum governo fez o que nós fizemos. É simples; eu passei os gastos com saúde de 4% para 12% do orçamento.

Estado – As obras do governo ajudaram a eleger Fleury. Mas o senhor só informou a opinião pública sobre a paralisação de obras por falta de recursos cinco dias depois da vitória. Por que a informação de que havia dificuldades financeiras não foi divulgada antes?

Quércia – Esse episódio não prejudicou em nada o Estado, tanto que as obras que estavam em em andamento continuam assim.

Estado – Mas o senhor pintou um quadro róseo durante a campanha.

Quércia – Tínhamos de esperar o novo governador para arrumar a casa para ele.

Estado – Não houve omissão de informações à população?

Quércia – Não.

Estado – O senhor foi criticado por esperar o final das apurações para só então dar a má notícia.

Quércia – Isso não é verdade. Notícia ruim era a paralisação do País, que continua.

Estado – Como o senhor analisa o impacto em sua futura campanha presidencial de alguns episódios polêmicos, como os gastos exagerados com publicidade?

Quércia – Isso é tudo onda, porque eu gastei o mesmo que o Montoro e muito menos que o (ex-governador Paulo) Maluf. Meu governo fez muito, os adversários não tinham por onde pegar, e foram por aí. Mas a divulgação do que é feito é fundamental para um governo.

Estado – Outro episódio obscuro foi o escândalo da corretora Banespa.

Quércia – Houve o caso, houve um desfalque, fizemos a abertura de inquérito na hora. Octavio Ceccato, que era presidente do banco, demitiu todo mundo. Há quem diga que não se deve abrir inquéritos, porque acaba respingando no governo. E acaba mesmo.

Estado – Tanto que Ceccato acabou saindo do governo.

Quércia – Foi por causa de circunstâncias políticas. Mas ele acabou de ser absolvido pelo Tribunal de Justiça. Isso não sai em jornal. O governo fez o que tinha que fazer.

Estado – Não falta quem diga que o senhor tem relações, digamos, pouco claras com empreiteiros e que existem caixinhas para financiar eleições.

Quércia – Não tenho relação alguma com empreiteiros. Tem um ou outro empreiteiro com quem fiz amizade. Nunca ouvi falar nessa história, não tem nada disso. Mas para fazer campanha eleitoral todo mundo tem que arrumar recursos.

Estado De onde vieram os recursos para a campanha de Fleury, que foi rica?

Quércia – Não foi rica. A do Maluf foi muito mais.

Estado – Mas o senhor ajudou candidatos até de outros Estados.

Quércia – Não.

Estado – Houve políticos desses Estados que manifestaram sem rodeios agradecimento do senhor por essa ajuda.

Quércia – Eu andei ajudando… Alguns empresários amigos meus ajudaram candidatos, mas não vou dizer quem são.

Entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 24 de fevereiro de 1991

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