Nada como um Congresso novinho em folha [egresso das urnas de 3 de outubro do ano passado, 1990] para aproveitar as boas ideias do Congresso que acaba de encerrar seu mandato, sem deixar lágrimas ou saudades. Tendo diante de si um esmagador feixe de desafios, o novo Congresso precisa aproveitar o gás da renovação popular, arregaçar as mangas e entrar fundo no trabalho.
Mesmo obrigado a lidar com a brutal confusão econômica em que o País vive, e na dolorida, vergonhosa chaga social que remete o Brasil para o Quarto Mundo em indicadores elementares de bem-estar, o Congresso não pode se esquecer da política. E, aí, uma de suas tarefas cruciais será o aperfeiçoamento da democracia – começando pelo rearranjo da atividade partidária e das regras eleitorais.
Pode-se argumentar que saturado de eleição, o País quer sossego. Mas, na verdade, nenhuma ocasião melhor para começar a mexer no vespeiro das regras eleitorais e partidárias do que o período de entressafra das urnas. Se quiserem enfiar a cara no serviço, os deputados e senadores já têm uma boa base para começar. São, justamente, três projetos de ex-deputados que começam a podar a frondosa árvore de bobagens que cresceu, viçosa, sob o nome de “horário eleitoral gratuito”
É um típico caso de dizer, com um gesto de enfado e desânimo: “É o Brasil”. Pois “horário eleitoral gratuito” se trata de brasileiríssima figura de retórica – algo que, na verdade, pode ser tudo. menos gratuito. Não é gratuito para os candidatos: quem não gastar fortunas na produção de programas palatáveis corre sempre o risco de receber um implacável clic de espectadores bocejantes. Não é gratuito para as emissoras de rádio e, sobretudo, de televisão que são obrigadas a retransmiti-lo: elas perdem fortunas em comerciais, sobretudo no horário nobre. E não é gratuito para os cidadãos: se, como eleitores, toleram a cretinice televisiva, na sua porção contribuintes pagam por ela, já que as emissoras, por lei, são em parte ressarcidas do prejuízo lançando-o como abatimento no Imposto de Renda.
Pelo menos três projetos da legislatura passada – dos deputados José Tavares (PMDB-PR), Nélson Friedrich (PMDB-PR) e Salim Curiati (PDS-SP) – atacam parte do problema e poderiam servir de começo para os novos deputados. De uma ou outra forma, eles restringem a festa que virou um dispositivo da Lei Orgânica dos Partidos Políticos que obriga as emissoras a transmitir anualmente, para cada um dos partidos com registro na Justiça Eleitoral, um programa anual em rede nacional e outro em rede estadual em cada um dos Estados brasileiros. De comum, todos têm uma coisa: só vai à TV partido com representação parlamentar.
Já é um começo. A infinita liberalidade da legislação eleitoral brasileira produziu esta aberração: qualquer grupo de gatos-pingados que se esforçar para colher um determinado número de assinaturas em alguns Estados já pode ser considerado um partido. Assim sendo, tem registro na Justiça Eleitoral. Tendo registro, tem acesso automático à televisão. Não apenas para realizar esses programas anuais de uma hora, mas sobretudo para o martelar diário dos eleitores durante as campanhas eleitorais. Isso levou a uma situação de pura e simples imoralidade, em que fundar uma legenda virou um grande negócio – ao pé da letra.
A recente campanha presidencial de 1989 aí está para não deixar ninguém mentir. Outras campanhas já tinham trazido a desavergonhada compra de legendas por candidatos visando a engordar seu espaço nas emissoras de TV. Na de 1989, porém, todo o País pôde assistir à fogueira da cobiça desenfreada que cercou o empresário e apresentador Sílvio Santos em sua frustrada tentativa de ser candidato [a presidente]. O próprio Sílvio contaria, mais tarde, ao governador paulista Orestes Quércia, que um dos interessados em lhe fornecer a legenda, cobrava, pelo gesto altruísta, a módica quantia de US$ 5 milhões.
A coisa virou, portanto, caso de polícia. Mais de 30 partidos já se habilitaram junto à Justiça Eleitoral, neste 1991, para realizar seus programas anuais. Pelo andar da carruagem, os eleitores brasileiros estão diante da terrível perspectiva de ter, durante o ano inteiro, uma hora de irrelevâncias em seu vídeo toda semana, religiosamente. Na campanha para prefeitos, no ano que vem, e nas que se seguirão, essa torrente do que o governador eleito do Rio, Leonel Brizola, chama de “partidecos” vai tornar a eleição um mercado persa nefasto e corruptor.
É preciso restringir o acesso irrefreado à TV. Um critério razoável seria, realmente, atribuir tempo a quem tem algum tipo de representação. Ou, então, levar em conta o número de filiados do partido, o número de diretórios municipais organizados em todo o País – algo que mostrasse se estar, ali, diante de alguma corrente relevante de opinião pública, e não de um bando de aventureiros caça-níqueis.
A regra atual pode ter tido a boa intenção de permitir a democratização da utilização dos meios eletrônicos de comunicação pelos pequenos grupos em fase de organização. Mas de boas intenções, como sabemos, o inferno está cheio. A democracia brasileira também.
(Artigo de Ricardo Setti , de São Paulo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 21 de fevereiro de 1991 sob o título original de “Eleição não é mercado persa”)