18 setembro 1970
A impressão de um observador recém-chegado ao Chile não corresponde à expectativa trazida do exterior. O Chile aguarda com calma os futuros lances que poderão consolidar a vitória do candidato socialista Salvador Allende, embora isto não signifique que se consiga conversar dois minutos com qualquer chileno sem que o tema eleições venha à tona. De norte a sul, êste é o assunto nacional, e ganha intensidade à medida em que se aproxima a data da confirmação ou não da eleição pelo Congresso.
[Allende venceu as eleições com 36,6% dos votos, um fiapo a mais do que o ex-presidente conservador Jorge Alessandri, que alcançou 36,33% do total. O candidato apoiado pelo então presidente democrata-cristão Eduardo Frei, Radomiro Tomic, ficou em terceiro lugar, com 27,8% dos votos. A Constituição chilena exigia que, sem que nenhum candidato obtivesse maioria absoluta, o mais votado deveria ser aprovado pelo Congresso.]
“A política é, mais que o futebol, o esporte nacional do Chile” – explica um industrial do setor de autopeças que, por sinal, está pensando em deixar o país para estabelecer-se no Brasil. Essa admirável consciência política dos chilenos torna mais dramática sua situação: todos sabem como serão difíceis os próximos anos, qualquer que seja o resultado da atual crise.
A politização dos chilenos é um fato: o mais modesto empregado de hotel é capaz de explicar as implicações da vitória de Allende no plano interno. Qualquer dona de casa da pequena classe média está perfeitamente a par das negociações entre a coligação de esquerda Unidade Popular e a Democracia Cristã. Um motorista de taxi saberia dizer com facilidade como funciona o mecanismo eleitoral do Chile ou fazer comentários atualizados sôbre a repercussão da vitória de Allende no exterior. Todos os jornais e revistas dedicam grandes espaços à política, os editoriais se sucedem. As emissoras de rádio e TV fazem entrevistas com políticos, mesas-redondas com personalidades e homens da rua para discutir a situação pós-eleitoral, políticos e todos os matizes presidem reuniões com jovens, trabalhadores ou donas de casa, e volta e meia se vêem, nas ruas do Santiago, manifestações pró e contra Allende.
Ainda ontem à noite, na Plaza de la Constitución, a 200 metros do palácio presidencial de La Moneda, um grupo de 300 chilenos deu mostras de seu grau de civilidade e consciência política. Era uma manifestação contra Allende chefiada por senhoras de meia-idade e mães de família. Uma delas, já bem idosa, portava uma bandeira do Chile, mesmo estando imobilizada numa cadeira de rodas. Várias pessoas falaram e depois todos cantaram o slogan: ”Chile es y será/ um país/ de libertad”. Um grande cartaz foi erguido dizendo: “La libertad es la herencia del bravo”. Nisso, quatro carros da Polícia tomaram posição ao lado da praça, enquanto o comandante do destacamento se dirigia às senhoras.
Imediatamente fêz-se silêncio para que o policial pudesse falar. Êle explicou que, para demonstrações daquele tipo, era necessária prévia autorização, e que pedia aos presentes, pessoas esclarecidas e patriotas, que obedecessem à lei. O grupo se dispersou em silêncio e em ordem, cinco minutos depois. Um detalhe que pode parecer uma curiosa ironia: o chefe do destacamento, não fossem os cabelos brancos, seria uma réplica surpreendente do general Juan Carlos Ongania, que governou ditatorialmente a Argentina até ser deposto por outro general, em junho passado.
A situação institucional criada pela vitória parcial de Salvador Allende começará a definir-se oficialmente a partir da próxima semana, quando a Unidade Popular irá manter negociações com a Democracia Cristã em torno dos quatro princípios básicos expostos pelo partido do presidente Eduardo Frei que Allende deve aceitar para que seja assegurada, no Congresso, sua eleição como o candidato mais votado. (Oficialmente, embora se deva aguardar ainda uma tomada de posição da junta diretiva do PDC, formada por 520 membros, os contatos iniciais já foram realizados, e se realizam ainda sigilosamente).
[Frei é um político respeitado que, durante os 6 anos de seu mandato, realizou grandes mudanças no país, inclusive uma reforma agrária considerada bem sucedida.]
Antes disso, nada acontecerá, por que o feriado de hoje – data nacional do Chile, [que marca o princípio do processo de independência em relação à Espanha, em 1810] – é o início de um fim de semana que tem para os chilenos muitas das características do Carnaval brasileiro. O país pràticamente pára.
Uma pergunta que caberia, nesta hora, é saber como poderá a Democracia Cristã ter a certeza de que, uma vez no poder, Allende respeitará o acôrdo que lhe limitará a atuação.
Bàsicamente, o processo tende a se desenvolver assim:
Salvador Allende necessita de votos dos democrata-cristãos para ser eleito pelo Congresso. A Democracia Cristã votará em Allende, desde que se comprometa, de uma ou de outra forma, a respeitar os quatro pontos básicos: manter a liberdade de imprensa, o sistema de eleições livres, respeitar a autonomia universitária e o respeitar o caráter profissional das Fôrças Armadas.
As maneiras de efetivar-se êste compromisso poderiam ser uma emenda constitucional ou uma declaração pública e formal do eleito perante a nação. Alguns setores da Democracia Cristã, estimulados pelos grupos postos à margem da decisão pelo resultado do pleito, pretendem alcançar a solução por meio de uma emenda constitucional. Isto é encarado pela esquerda como parte de um “plano golpista” que vista impossibilitar a execução do programa de Allende.
De qualquer forma, a Democracia Cristã tem manifestado apenas objetivos políticos restritos, ao negociar com a Unidade Popular. Um deputado democrata-cristão explica que a Democracia Cristã não pode entregar o poder a Allende “sin más”, isto é, a Democracia Cristã parece querer marcar uma posição política clara em defesa da liberdade em vários setores, como maneira de manter uma plataforma que não corra o risco de se esmaecer e perder a identidade, futuramente, diante do programa anunciado pela Unidade Popular.
A esquerda considera “manobras golpistas” diversas atitudes que possam vir a perturbar a execução do programa da Unidade Popular, já que parece improvável a ocorrência de um golpe de fôrça contra Allende na atual situação. A esquerda chilena é forte e organizada, e a turbação dos passos de Allende no poder, por ato de fôrça, teria consequências literalmente imprevisíveis. (Um rápido exame da esquerda chilena mostraria que dela fazem parte, além de mais de um terço do eleitorado do país, 97% dos sindicatos controlados pelos partidos de esquerda, e grande parte do movimento universitário e secundário. Muitas vêzes, nos últimos anos, ocorreram ocupações de escolas por estudantes).
A forte presença da esquerda pode se sentir de várias formas. Pelo menos uma dúzia de favelas de Santiago têm nomes característicos: Ho Chi Minh (o líder comunista que derrotou os franceses e tornou o Vietnã do Norte independente e ainda hoje inspira a guerra de seu país e dos guerrilheiros vietcongs contra os EUA e o Vietnã do Sul), 26 de Julho (data da primeira ação armada da revolução em Cuba) ou Lênin, o líder histórico da revolução bolchevique – e possuem milícias populares para manter a ordem interna, além de viverem em regime de administração comunitária própria.
Perto de 100 propriedades agrícolas de porte razoável estão ocupadas por camponeses sem terra. Partidos de esquerda dispõem de amplo acesso aos meios de comunicação em geral, além de serem proprietários de jornais e emissoras de rádio próprios. É antiga a tradição de luta política da esquerda chilena. O país teve, com o presidente Pedro Aguirre Cerda (1938-1941), um dos três únicos governos de Frente Popular do Ocidente (outros foram o de León Blum, na França, e o govêrno republicano espanhol, numa época em que o fascismo proliferava no mundo e na América Latina). Finalmente, cumpre lembrar que parte razoável do eleitorado do candidato democrata-cristão à Presidência, Radomiro Tomic, segundo se observa, apóia a plataforma da Unidade Popular.
Sendo assim, uma intervenção extra-legal direta dificilmente deixaria de provocar uma comoção grave, a não ser que o futuro govêrno se deteriore por se revelar incompetente para resolver os graves problemas econômicos do Chile, ou se desmoralize perante seus próprios partidários, por não colocar em execução o programa da Frente Popular.
Reportagem publicada no Jornal da Tarde, de São Paulo, em 18 de setembro de 1970. Abaixo, reprodução da publicação original