Aceso o pavio da dinamite: a Câmara [dos Deputados] recebe hoje o pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, por meio de ofício do ministro Luís Galotti, presidente do Supremo Tribunal Federal, ao presidente José Bonifácio. [Galotti recebeu o pedido de licença para processar Márcio do procurador-geral da República, Décio Miranda, que tem iniciativa de propor a ação. Na época, o Ministério Público misturava a função de defensor da lei e de advogacia da União, o que deixou de existir com a Constituição de 1988. No caso, cabia ao presidente do Supremo encaminhar o pedido para o presidente da Câmara, que deveria autorizar ou não um processo contra o deputado carioca]. 

A crise entrará, agora, em sua fase decisiva, o que não significa que seu desfecho esteja próximo.

José Bonifácio enviará o pedido hoje mesmo ou amanhã à Comissão de Justiça, cujo presidente, Djalma Marinho [Arena-RN], deverá indicar para relator o vice-líder governista Flávio Marcílio [CE]. Pensava-se que o próprio presidente da Comissão fosse avocar a si a matéria para relatar, mas informações seguras dão conta de que será mesmo Flávio Marcílio. Não se pense, contudo, que o fato de o relator ser o vice-líder vá favorecer o governo. Flávio Marcílio, que é catedrático na Faculdade de Direito do Ceará [e professor da Universidade de Brasília], é notoriamente partidário da tese de que a inviolabilidade dos mandatos parlamentares é absoluta, e não relativa.

O panorama na Comissão de Justiça, aliás, não é muito risonho para o governo. A maioria dos 21 arenistas do órgão – que tem 31 membros – é de tendência contrária à concessão da licença. Senão, vejamos: o deputado monsenhor Arruda Câmara [RN], de fidelidade governista indiscutível, fez um longo discurso, recentemente defendendo a inviolabilidade do mandato de Márcio Moreira Alves embora – como é óbvio — discorde do conteúdo de seus discursos.

O deputado Rubem Nogueira [BA], que foi integralista e que vota sistematicamente com o governo, fez o mesmo, na semana passada, para surpresa de seus colegas. O deputado Guilherme Machado, presidente da Arena mineira, é de posição conhecida, no mesmo sentido. Também o vice-líder Geraldo Guedes [MG]. Idem o deputado Francelino Pereira [MG], ligado ao chanceler Magalhães Pinto. A mesma coisa o deputado Murilo Badaró [MG], do grupo “rebelde” [da Arena]. Há outros. Mas bastariam esses para, somados aos votos do MDB, infligir uma derrota ao governo.

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Reprodução da matéria publicada em página quase toda ocupada por publicidade ligada ao Natal © Reprodução

A coisa será decidida, pois, no plenário. Mas o melhor a fazer, a esta altura, é não arriscar prognósticos. A tendência inicial, como se recorda, era de o plenário negar a licença. O ânimo foi mudando, a partir do novo discurso de Márcio — criticando a Polícia carioca por violência contra estudantes – até dar a impressão nítida de que a cabeça do deputado rolaria. Depois, ocorreu um princípio de reviravolta, que desafogou um pouco os homens do MDB. A situação estacionou embora continue sujeita a ventos e tempestades;

Fala-se, agora, em convocar o Congresso extraordinariamente, para que a sessão legislativa prossiga até perto do Natal. As notícias nesse sentido são do conhecimento geral do Congresso, atingindo os funcionários, que evidentemente não estão gostando. Mas ainda não foram confirmadas ou desmentidas.

O objetivo da convocação seria o de facilitar e abreviar o quanto possível a questão da licença. Acontece que uma confusão no texto da Constituição provocará muita controvérsia sobre se é ou não obrigatória a obediência ao parágrafo 2º do artigo 34, que diz: “Se no prazo de 90 dias, a contar do recebimento, a respectiva Câmara não deliberar sobre o pedido de licença, será este incluído automaticamente em ordem do dia, e nesta permanecerá durante 15 sessões ordinárias consecutivas, tendo-se como concedida a licença se, nesse prazo, não ocorrer deliberação”.

O problema é que o parágrafo único do artigo 151 da Constituição em que Márcio foi enquadrado diz que “quando se tratar de titular de mandato eletivo federal, o processo dependerá da respectiva Câmara, nos termos do artigo 34, parágrafo 3º” (o grifo é nosso). Este parágrafo faz menção, portanto, ao parágrafo 3º e não ao 2º do artigo 34. Os juristas do MDB e mesmo alguns da Arena acham que por isso não existe obrigatoriedade dos 90 dias e das 15 sessões consecutivas. Tal prazo – embora o vice-presidente Pedro Aleixo [, jurista e presidente do Congresso Nacional], por exemplo, entenda de maneira diversa — só valeria para o caso de crimes comuns. Portanto, a convocação extraordinária pouco adiantaria, já que a Câmara pode votar ou não o pedido de licença durante o período.

A esta altura, com o pedido de licença já batendo à porta da Câmara, ficou prejudicada a manobra que alguns deputados pensaram realizar: dedicar uma sessão da Câmara, talvez mesmo uma especial, no dia 15 de novembro, para prestar homenagem às Forças Armadas, como desagravo.

Acontece que o desagravo que os militares esperam é a concessão da licença. Se ela for negada, contudo, parece remota a hipótese dramática do fechamento do Congresso. Como disse há dias o cronista Carlos Castello Branco, o regime precisa do Congresso, sabe disso, e vai mantê-lo, mesmo que seja para não fazer mais absolutamente nada.

(Artigo de Ricardo Setti, de Brasília, publicado a 4 de novembro de 1968 no Jornal da Tarde, de São Paulo, sob o título original “Licença contra Márcio vai à Câmara)

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