A impressionante sucessão de cerimônias a despedida do 39º presidente dos EUA, Jimmy Carter (1977-1981), morto a 29 de dezembro, incluiu receber homenagens em sua Geórgia natal e velório no centro do Capitólio, em Washington, e foi literalmente um funeral de chefe de Estado, à altura do homem que o presidente Joe Biden disse poder definir com três palavras: “Caráter, caráter, caráter”.
Depois de deixar o poder, o ex-presidente recebeu uma montanha de doações para montar o Carter Center em Atlanta, na Geórgia, cujos objetivos principais eram e são o avanço do respeito aos direitos humanos e a colaboração para diminuir o sofrimento humano mundo afora. A instituição teve papel importante na luta pela erradicação de doenças por meio de programas pioneiros de saúde. A terrível doença parasitária conhecida como do verme da Guiné, que por meio de água contaminada afetava praticamente todos os países da África, hoje se reduz a quatro deles e está próxima de desaparecer graças ao trabalho do Centro.
A batalha para diminuir o sofrimento das pessoas inclui a defesa do meio ambiente e a difusão de técnicas agrícolas que melhorem a produção de alimentos dos países pobres.
A parte mais visível do trabalho da ONG de Carter é sua participação no monitoramente de eleições — já o fez em mais de 100 pleitos –, em prol de que sejam transparentes e isentas de fraudes. Entre seus objetivos também se inclui a tentativa de resolver conflitos de forma pacífica, a luta contra o tráfico de seres humanos e a defesa da liberdade de informação.
O presidente que impulsionou o mais importante acordo de paz jamais feito no conturbadíssimo Oriente Médio — a paz entre Israel e seu vizinho e então maior inimigo, o Egito, em acordo assinado em março de 1979 — teve altos e baixos durante seu único mandato, que chegou a termo com sua derrota para Ronald Reagan em 1980, mas, no artigo que vem depois das fotos abaixo, procurei mostrar a importância de Carter para os EUA e o mundo.
Agora, o artigo que escrevi para a edição datada de 21 de janeiro de 1981, um dia depois de o democrata Carter ter passado o poder para o vencedor da eleição de novembro de 1980, o republicano Ronald Reagan.
A VITÓRIA DE JIMMY CARTER
Nesta terça-feira, 20 de janeiro de 1981, chega finalmente para o presidente americano Jimmy Carter o momento de decolar da Casa Branca rumo ao limbo político em que flutuam os ex-presidentes. Trata-se de um estado de imponderabilidade nem sempre reconfortante, sobretudo para um político a ele remetido contra a vontade — e, no caso de Carter, de forma mais rápida e dramática que sua irresistível e risonha ascenção, quatro anos e pouco atrás.
O retiro de Jimmy Carter será, é certo, amenizado no plano material pela generosa pensão com que o Estado americano contempla até a morte os que tiveram o pesado encargo de geri-lo por encargo do povo. Mas certamente será um retiro com traços de amargura. Washington não disfarçou uma sensação de alívio por ter-se livrado, afinal, de um presidente que nem compreendeu nem tolerou. O presidente desocupa o cargo sem ter amigos na cidade.
Há mesmo previsões implacáveis segundo as quais, daqui para a frente, Carter terá que contentar-se em saber o que acontece lendo jornais e vendo televisão em sua Geórgia natal por não ter a sua disposição a rede de contatos no Congresso, na grande imprensa e na alta burocracia, que em geral não deixa parar de tocar os telefones dos ex-presidentes — inclusive dos vilões, como Richard Nixon.
Tendo vencido as eleições de 1976, em grande medida, por ter se apresentado como alguém que nada tinha a ver com tudo de maléfico que o eleitorado identificava nos centros de decisão nos Estados Unidos após o Vietnã e Watergate, Jimmy Carter acabou desabando também pelo fato de ter, na Casa Branca, permanecido um forasteiro. Durante quatro anos, ele foi um distante, enigmático presidente — alguém incapaz de confraternizar com senadores poderosos em torno de uma mesa de jantar, que não cultivava amizades em Wall Street, que era tratado formalmente de “senhor” mesmo por seus assessores mais íntimos e que, declaradamente, desprezava os dirigentes de seu próprio partido, o Democrata.
Agora, prevê-se para Carter o degredo do esquecimento — e, sem maiores rodeios, duas grandes editoras de Nova York já disseram, sem maiores rodeios, não ter grande interesse pelos dois livros que Jimmy Carter pretende escrever sobre sua Presidência.
Excetuado o caso de Nixon, que foi desonroso, não há exemplo na recente história americana de um presidente que tenha deixado o posto de forma mais melancólica, mesmo se incluído nos derradeiros dias de seu mandato o brilho da televisão ainda acendido sobre Carter, devido à triste questão dos reféns americanos no Irã.
E, no entanto, é preciso dizer que este homem deixa algumas profundas, vitais marcas de sua passagem efêmera pelo governo da maior potência do mundo.
Talvez seja útil a lembrança, num momento em que, um pouco como ocorre na China com a “Gangue dos Quatro”, só falta culpar Jimmy Carter e seu governo pelo mau tempo e pela erupção do vulcão Saint Helens, no Estado de Washington. Não, é claro, que o desempenho da administração Carter tenha sido brilhante. Deus sabe que se tratou de uma sucessão de frustrações entremeada por êxitos muitas vezes problemáticos.
Em certos momentos decisivos, porém, não faltou admirável coragem moral a este homem das trapalhadas na crise do Irã, do estardalhaço exagerado na crise do Afeganistão, das idas e voltas do relacionamento com os russos e das cabeçadas sem fim no trato da economia americana. Ele mergulhou pessoalmente, de uma forma que diplomatas experientes consideram suicida, para arrancar do Egito e de Israel os Acordos de Paz de Camp David, de 1979. Enfrentou interesses poderosos e uma barragem de demagogia interna para devolver o Canal do Panamá, apoiar um governo de maioria negra em Zimbabwe e normalizar as relações com a China.
Jimmy Carter talvez seja lembrado, acima de tudo, por sua política de direitos humanos. Não que ela tenha sido completamente consistente. Mas, impulsionada de forma inédita desde a própria Casa Branca, até então identificada justamente com as forças violadoras dos direitos humanos, essa política levou luz, esperança e alívio concreto para oprimidos nos quatro rincões do planeta e apontou um caminho para que os Estados Unidos resgatem uma de suas maiores grandezas.
Este homem agora vencido e desacreditado também teve a coragem e o descortínio de ser o primeiro presidente americano a dizer a seu povo que o país, a vida e o mundo já não são os mesmos, que é impossível a uma nação com 5% da população do globo ter que devorar um terço dos recursos energéticos existentes para continuar vivendo — e, principalmente, que os Estados Unidos, num mundo complexo e multifacetado como o de hoje, não mais podem tudo e terão de conformar-se com isso.
São verdades que o povo americano, a julgar pelas promessas nostálgicas de Ronald Reagan, ainda se recusa a aceitar, e Carter com certeza deve em parte sua derrota à determinação em dizê-las. Por isso, e por ter elevado os direitos humanos a uma categoria que não mais pode ser ignorada nas relações internacionais, Carter justificou seu mandato — e, se “a vida não é justa”, como ele próprio disse certa vez, a História, com Jimmy Carter, acabará sendo.