O caso das gravações ilegais de telefonemas perpetradas na Bahia contra desafetos pessoais e políticos do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) é grave, gravíssimo. Trata-se de uma clamorosa violação de direitos constitucionais de pessoas, e de crimes praticados com a utilização da máquina do Estado.

O episódio está sendo investigado e suas conseqüências largamente discutidas. Mas um seu aspecto tem passado em branco, e ele não é irrelevante: a linguagem utilizada por autoridades, políticos e praticamente a generalidade da mídia para designar o crime que deu início ao caso todo. A gravação clandestina de telefonemas transformou-se – e parece não haver mais jeito de mudar isso – em “grampo”. Jornalistas de TV, políticos e até o ministro da Justiça, o ínclito advogado Márcio Thomaz Bastos, referem-se a “grampos” e “grampear”.

A implicância do signatário com “grampo”, já expressa em outras ocasiões, advém do fato de tratar-se de gíria que tem origem no crime. Foi esse, durante o período da ditadura militar, o vocábulo utilizado pelos violadores da lei para designar sua atividade delituosa [, de auscultar conversas de “suspeitos” sem autorização judicial]. Parece haver uma tendência maligna de o linguajar do lado de lá da lei contaminar quem está do lado de cá – e isso é mau.

Veja-se, a esse respeito, a linguagem que muitos veículos usam na cobertura jornalística do crime. Lembram-se de Elias “Maluco”, assassino do repórter da TV Globo Tim Lopes, em 2002? Pois bem, com o crime horrendo cometido pelo bandido, veio novamente à tona todo um vocabulário que, de uso corrente entre criminosos e, freqüentemente, a polícia, incorporou-se ao texto das matérias de jornais, revistas, emissoras de TV e de rádio e sites na internet.

Tim teria sido “julgado” e “executado” por Elias e comparsas. Muitas vezes essas palavras foram impressas sem aspas em jornais e revistas, e na TV e rádio não eram precedidas de qualquer ressalva, nem no tom de voz ou na expressão dos repórteres que, nesses veículos, são parte integrante e fundamental do impacto da informação no ouvinte ou telespectador.

Ora, quem julga, no Brasil, é a Justiça. E “executar” deveria, obviamente, ficar restrito a descrever o cumprimento de penas de morte em países que a adotam, exceto nos casos em que as autoridades carcerárias “executam”, num país como o nosso, a sentença de um juiz. O uso indiscriminado de “julgar” e “executar” banaliza como prerrogativa de qualquer um – pior, como prerrogativa de marginais – tarefas exclusivas, exclusivíssimas do Estado.

Mas a coisa não pára por aí. A irônica e odiosa forma inventada pelos bandidos para designar locais onde fazem desaparecer, freqüentemente mutilados, corpos de suas vítimas, especialmente na Baixada Fluminense – “ponto de desova” – ingressou sem maiores reflexões na linguagem jornalística, e não é de hoje. Daí procede o verbo, igualmente horroroso, “desovar”, para significar desfazer-se de um corpo humano.

Certos programas policiais cafajestes de rádio e TV chegam mesmo a usar, como se fosse brincadeira, a velha maneira macabra e terrível inventada pelo crime para renomear o cadáver: “presunto”. A mesma incorporação pelo jornalismo acontece com uma série de verbetes do vocabulário marginal: “soldado” – palavra que, em países menos contaminados que o nosso pelo papel das Forças Armadas no recente passado histórico, é um símbolo de orgulho nacional, alguém que combate para defender a pátria – aqui virou integrante de quadrilhas de traficantes; “avião”, como se sabe, designa os garotos de favelas usados por traficantes para transporte de porções de tóxicos para fregueses; e por aí vai.

Isso ocorre também no âmbito do crime do colarinho branco. “Laranja”, gíria de bandidos originariamente usada para qualificar um marginal arraia-miúda que, em geral na cadeia, assume um crime de morte para livrar a cara de um bandido mais graduado, passou a ser aquela pessoa anônima, em geral pobre e quase sempre alheia à maracutaia praticada, em nome da qual estelionatários, ladrões do Erário e outros tipos de delinqüentes abrem empresas de fachada e contas em bancos ou remetem dinheiro para paraísos fiscais, [escapando eles próprios da lei].

Na barulhenta Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de PC Farias, o falecido ex-tesoureiro de campanha do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, surgiram as contas bancárias “fantasmas” – abertas fraudulentamente em nome de pessoas inexistentes, para nelas movimentar o dinheiro sujo.

Pouco depois, a mídia em peso passou a se referir ao “fantasma A” ou ao “fantasma B” com a maior naturalidade, como se fossem pessoas reais e como se aquilo fizesse parte da vida quotidiana e do universo legal, sem o cuidado fundamental de esclarecer ao público, a cada menção, tratar-se de ato criminoso.

Todo esse universo lingüístico e sociológico é o pano de fundo diante do qual o “grampo” ganhou curso generalizado.

Que pena. Utilizar como corriqueiro o vocabulário do crime é uma forma a mais, entre tantas em que temos incidido, de capitular diante dele.

(Artigo de Ricardo Setti, de São Paulo, publicado a 6 de março de 2003 no extinto site www.nominimo.com.br)

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